sábado, 29 de setembro de 2012

OS DEGELOS NO ÁRTICO

Autor: José Eustáquio Diniz Alves
[EcoDebate] O pior cego é o que não quer ver. Mas está ficando impossível ignorar as evidências, cada vez mais visíveis, do aquecimento global. De acordo com a National Oceanic and Atmospheric Administration o mês de julho de 2012 foi o mais quente dos últimos 100 anos nos Estados Unidos e a seca que atingiu o centro do país já provocou aumento do preço mundial dos alimentos. Segundo a NASA, o degelo na Groelândia chegou a 97%, neste verão de 2012 no hemisfério Norte. No Ártico o degelo bateu o recorde histórico, um mês antes do fim do verão. O derretimento do gêlo decorre de uma onda de calor, que difere das anteriores pela intensidade e pelos danos na camada de gelo. No semestre passado um iceberg de 119 quilômetros quadrados, duas vezes o tamanho de Manhattan, se descolou do glaciar de Petermann.
Não há certezas absolutas até que ponto o degelo tem sido resultado das mudanças climáticas, provocado pela emissão de gases de efeito estufa que geram o aquecimento global. Porém, os dados mostram que os efeitos deletérios do aumento da temperatura, pelo menos em parte, já estão provocando o derretimento das geleiras, além de espalhar secas catastróficas, queimadas, etc.
A redução da camada de gelo tem se acelerado desde os anos 1990 e muitos cientistas acreditam que o Ártico pode ficar sem gelo nos verões ainda neste século, possivelmente já na década de 2020. O climatologista do Centro Nacional de Ciências Atmosféricas da Universidade de Reading, Jonny Day, disse ao jornal The Guardian: “Desde os anos 1970, houve uma redução de 40% na extensão do gelo do Ártico”.
Há também o derretimento das geleiras do Himalaia, dos Andes, do Kilimanjaro e de outras cordilheiras do mundo. Isto tem provocado o aumento do nível dos oceanos e ameaçado os países insulares e as populações das regiões costeiras dos diversos continentes.
Evidentemente, existem dúvidas quanto deste aquecimento é devido à variabilidade natural e quanto é devido às atividades antrópicas. Mas os sinais já são suficientemente claros de que há algo de errado com o clima da Terra e também que há algo de errado com o modelo de produção e consumo que é hegemônico no mundo.
Segundo reportagem do jornal The Guardian, o professor Richard Muller, físico e ex-cético da mudança climática, que fundou o projeto Berkeley Earth Surface Temperature (Best), disse que ficou surpreso com as descobertas de que a temperatura média da superfície terrestre aumentou 1,5º ao longo dos últimos 250 anos, incluindo um aumento de 1 grau ao longo dos últimos 50 anos.
A equipe do projeto Best analisou o impacto da atividade solar no aquecimento global – uma teoria popular entre os céticos do clima – mas descobriu que, ao longo dos últimos 250 anos, a contribuição do sol foi “praticamente zero”. As erupções vulcânicas tiveram pequenos e curtos efeitos no aumento da temperatura no período 1750-1850, mas não afetaram quase nada o aquecimento global no século 20.
Segundo o professor Muller: “Embora a concentração de dióxido de carbono atmosférico não prove cabalmente que o aquecimento global é causado por gases de efeito estufa derivado das atividades antrópicas, é atualmente a melhor explicação que encontrei”. Ele disse que as descobertas de sua equipe foram mais longe e mais fortes do que o último relatório publicado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Portanto, não há com negar que a temperatura da Terra subiu quase 1º C. (um grau) nos últimos 50 anos. Se este ritmo continuar os cenários para o século XXI são os piores possíveis e a humanidade vai enfrentar os maiores desafios da sua história, além de colocar em risco a sobrevivênica de inúmeras espécies. As populações litorâneas vão sofrer com a elevação do nível do mar e com os ecomigrantes e ecorefugiados do clima.
A divisão de população da ONU calcula que, nesta década de 2010 a 2020, estejam nascendo cerca de 136 milhões de crianças por ano e morrendo 60 milhões de pessoas por ano. Isto quer dizer que a população mundial cresce anualmente em 76 milhões de pessoas, representando uma taxa de 1,1% ao ano. O Fundo Monetário Internacional calcula que a economia mundial deva crescer em torno de 3,6% ao ano na atual década. Portanto, a população deve crescer mais de um bilhão de habitantes nos próximos 20 anos, enquanto a economia deve dobrar de tamanho. O impacto deste crescimento demo-econômico na pegada ecológica será enorme.
O uso dos combustíveis fósseis está por trás do sucesso do “progresso civilizatório”, pois possibilitou grande crescimento da economia e da população global nos últimos 200 anos. O mundo ainda é refém do petróleo e seus devivados. Porém, o preço desta dependência (que emite gases e aquece o Planeta) já pode ser visto no derretimento das geleiras e deverá ser pago nas próximas décadas, com o encarecimento do custo da energia e o aumento do preço dos alimentos.
Muito é preciso ser feito para mudar o atual pradrão de produção e consumo e para a redução do impacto ecológico da humanidade, mas três tarefas globais urgentes são: proteger a biodiversidade, avançar na transição demográfica (da alta prole para taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição) e garantir a transição da matriz energética (do uso intenso de combustíveis fósseis para fontes renováveis. limpas e de baixo carbono). O mundo precisa romper com o mito do crescimento à qualquer custo e buscar a estabilidade dentro de suas fronteiras planetárias. Sem dúvida, esfriar um pouco as expectativas de consumo pode contribuir para amenizar o clima de aquecimento provocado pelas atividades antrópicas.
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
Fonte: EcoDebate de 11/09/2012
 

sábado, 22 de setembro de 2012

CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DA IMPUNIDADE

 
Autor: Rubem Penz
De nada adianta remediar as consequências sem, antes, combater suas causas. Estaríamos diante de um argumento perfeito e acabado para priorizar políticas públicas senão fosse um pequeno problema: em um país carente como o Brasil, causas e consequências estão emaranhadas de tal forma que fica difícil saber onde estão umas e outras. Assim, não tem ponta do fio que se puxe sem enforcar um laço logo adiante. Mas, em algum momento, alguém precisará enfrentar o nó.
Por exemplo: pichações e depredações de bens públicos são, claramente, consequências de uma comunidade com valores deturpados, impunidade, baixa autoestima e falta de educação. Bom, mas valores deturpados são consequência da impunidade, que é uma das causas da baixa autoestima, que, por sua vez, é uma das consequências dos baixos investimentos em educação causados, entre outras coisas, pelo enorme e constante dispêndio de capital na reconstrução e limpeza de bens públicos depredados em consequência da total impunidade causada por valores deturpados etc.
Outro caso: o número inacreditável de mortes no trânsito é, de forma consensual, consequência das manobras imprudentes de motoristas despreparados, alcoolizados ou impunes, dirigindo em vias mal sinalizadas e pouco fiscalizadas. Mas motoristas alcoolizados são consequência de vias pouco fiscalizadas, uma das causas da impunidade que permite aos motoristas despreparados fazerem suas manobras imprudentes às vezes causadas por deficiência na sinalização por falta de verbas em consequência do grande prejuízo causado por tantas mortes no trânsito de cidadãos produtivos e por aí vamos sem parar.
Vejamos outro problema: a corrupção. Ela só é possível graças à certeza de impunidade de agentes públicos e privados antiéticos com livre acesso às verbas de modo nada transparente. Acontece que a falta de transparência é consequência da ação dos representantes públicos corruptos, que agem a serviço de empresários antiéticos e que só existem por causa da impunidade que resulta da falta de transparência, que nasce no rastro do livre acesso às verbas por parte de agentes públicos mal intencionados que são resultado de um sistema corrupto alimentado por doses absurdas de impunidade.
Eu poderia ficar por muitas páginas elegendo um por um dos problemas brasileiros, identificando suas causas e concluindo que elas são, também, pura consequência. Porém, os três exemplos acima, vistos na ótica de um leigo, são mais que suficientes para dar a idéia do emaranhado em que vivemos. Para tornar o caso mais dramático, a cada ano o novelo cresce mais, se enreda mais, muito mais nos confunde.
Pensando nisso, lembrei (quisera esquecer...) do tempo de pescador: a mesma linha que alcança grandes distâncias quando arremessada de uma carretilha, nem atinge o chão quando forma um flash – também conhecido como cabeleira. Em outras palavras, na mesma população reside a capacidade de avançar ou enredar-se, bastando escolher entre a ordem ou o caos. Conforme nossos exemplos, uma cidade bonita e limpa poderia atrair turistas, que gerariam empregos, consumo e impostos, que aplicados em educação e infraestrutura fariam crescer a autoestima e a consciência pública, esta última com a tendência a exigir estruturas políticas mais transparentes para repelir os representantes desonestos e punir quem se dispusesse a subornar o governo.
Bom, mas então basta encontrar os pichadores, depredadores, corruptos e todos os problemas estarão resolvidos? Não. O raciocínio é o inverso: enquanto não se prevenir e punir sequer as pichações, depredações e corruptos (crimes ridículos), o nó maior nunca será desatado. Causas e consequências, ações e reações, são as duas pontas da mesma linha.
Fonte: Fábio Oliveira – fabioxoliveira2007@gmail.com
                                     fabioxoliveira.blog.uol.com.br/

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

SITIANTE RECOMPÔS 80% DA MATA



De sitiante a semeador de florestas . Guaraci Diniz recompôs 80% da mata de seu sítio e criou a primeira RPPN de Amparo (SP); hoje, obtém da propriedade 87% do que precisa para viver

Há quatro anos, em uma pequena parcela do Sítio Duas Cachoeiras, de 30 hectares, em Amparo (SP), região de Campinas, despontavam, numa área que antes era pasto degradado, mudinhas de árvores nativas recém-plantadas. As espécies que compuseram o reflorestamento da vez – assim como das várias outras vezes – foram escolhidas de maneira curiosa: com o Cartório de Registro de Imóveis de Amparo, em antigas escrituras de terras da região. O proprietário do sítio, Guaraci Diniz Júnior, lembra da busca, feita em parceria com o historiador Roberto Pastana Teixeira Lima. “Acidentes naturais, como rios e montanhas, eram usados para demarcar o limite das propriedades”, comenta. “E também árvores.” Matéria de Tânia Rabello, em  O Estado de S.Paulo.

Assim, sabia-se que, do angico branco, contando-se cem passos, até a margem do Rio Camanducaia, tinha-se parte do limite de uma fazenda. De lá, virava-se à esquerda, chegando ao jequitibá-rosa, próximo à paineira. A candeia ficava ali, encostada numa grande rocha oval, e também servia como ponto de demarcação de limites. “Detectamos, nesses registros, cerca de cem espécies de árvores ocorrentes na vegetação da região”, diz Diniz, que pôde recompor o histórico florestal de uma área bastante desmatada.

As mudas nativas Diniz vem obtendo, nos 25 anos em que já faz esse trabalho de recomposição florestal, de várias maneiras. Por meio de um pequeno viveiro próprio, e também do Consórcio das Bacias dos Rios Piracicaba-Capivari-Jundiaí; de parcerias com viveiristas e até com empresários interessados em neutralizar as emissões de carbono, financiando o plantio de árvores nativas dentro do Programa Estadual de Microbacias da Secretaria de Agricultura paulista.

O plantio e a manutenção das mudinhas plantadas há quatro anos – 5 mil, no total, em 4,8 hectares – foram bancados voluntariamente pelo empresário Samuel Lopes de Oliveira, dono de uma gráfica em Santo André (SP), que com isso neutralizou no mínimo 40 toneladas de carbono/ano, levando-se em conta todas as atividades da gráfica.

Há quatro anos eram mudinhas isoladas numa árida área de pasto. Agora, ao revisitá-las e vê-las a meio caminho de se transformarem numa densa floresta, só dá para parafrasear Pero Vaz de Caminha: “Nesta terra, em se plantando, tudo dá”. Em 2009 foram mais 2 mil mudas e, recentemente, Diniz plantou 4 mil, em 4 hectares. Em breve, mais um trecho de mata surgirá.

Há dois anos, parte da área florestal, 6,3 hectares, transformou-se na primeira Reserva Particular do Patrimônio Natural da região, a RPPN Sítio Duas Cachoeiras. E assim permanecerá intocada, independentemente de o sítio mudar de dono ou não.

Vida orgânica. Guaraci Diniz seria um sitiante como qualquer outro que precisasse ou quisesse reflorestar sua propriedade, não fosse o propósito que se incumbiu – ou foi incumbido, por força das circunstâncias -, de tentar viver o mais organicamente possível. “Sou de São Paulo. Quando vim para o sítio, foi para morar mais perto da faculdade, que fazia em Campinas”, diz. “Quando a gente vem morar numa propriedade rural e percebe todas as necessidades do local, começa a pensar em como atendê-las, não necessariamente gerando receita, mas sobretudo sem gerar despesa.”

Adubos verdes. Começou por cultivar o próprio alimento. E a pesquisar como fazê-lo da maneira mais saudável e menos custosa possível – sem o uso de adubo químico e agrotóxicos -, só fertilizando a terra com o que a própria natureza oferece, como adubos verdes, obtidos dos próprios restos de culturas. Foi se enfronhando no universo da agroecologia e partiu para a agrofloresta, cultivo que tenta imitar a biodiversidade de uma floresta tropical ou é feito dentro da própria mata. Então, além do alimento, começou a formar uma floresta que abrigasse as plantas cultivadas.

Hoje o Sítio Duas Cachoeiras tem 80% de sua área reflorestada. São 7 hectares de mata com mais de 50 anos, que já existiam, e mais 17 hectares de floresta reintroduzidos por Diniz.

O resultado do trabalho foi aparecendo. “De uma nascente e meia – porque uma secava no inverno -, hoje tenho cinco, com água abundante.” Seu modo de vida mudou e a sustentabilidade do sítio pôde ser provada em números. Há dez anos, o Laboratório de Engenharia Ecológica e Aplicada da Unicamp calculou o índice de sustentabilidade do Sítio Duas Cachoeiras: 87%.

Ou seja, 87% das necessidades da propriedade são atendidas ali, desde alimentos até energia – painéis solares dão conta do aquecimento da água e de fornecimento de eletricidade, além de rodas d’água instaladas no ribeirão que corta a propriedade e forma duas cachoeiras. “É o que se consegue quando se trata a terra como um organismo; nós fazemos parte dele”, ensina. O aprendizado desses anos se transformou em consultorias, que presta não só na região, mas aos interessados de todo o País, ensinando a quem quiser sobre manejo agroecológico de sítios, recomposição florestal, sementes e agrofloresta.

Outro estudo feito no sítio, também da Unicamp, detectou a importância da manutenção ou recomposição da cobertura vegetal nas áreas rurais para a produção de água limpa e abundante para a população. “Com a floresta recomposta, contribuímos com o aumento da capacidade de abastecer de água de excelente qualidade o distrito de Arcadas, em Amparo”, garante. Esse estudo demonstrou que somente a área reflorestada no sítio produz o equivalente a 1,5% da água necessária para o abastecimento da área urbana de Amparo.

Em um terceiro estudo, o pesquisador Thiago Roncon, da Universidade Federal de São Carlos, provou que floresta em pé vale mais que soja, por todos os benefícios econômicos e ambientais ao entorno. “Quando se fala em pagamento por serviços ambientais, como querem os governos federal e estadual, essas contas deveriam ser levadas em consideração. Os benefícios que uma propriedade preservada gera para a comunidade são infinitamente maiores que os R$ 200 por hectare que o governo estadual se propõe a pagar para os produtores.”

Antes e depois. Nas fotos que mostram o antes e o depois do sítio, é patente a transformação da paisagem. De pastos degradados – cenário ainda presente nas propriedades vizinhas -, o sítio virou oásis. Literalmente, pois no período seco é comum vizinhos virem lhe pedir água para dar às criações ou às lavouras, ainda tratadas convencionalmente e com nascentes intermitentes.

“Infelizmente, os agricultores do entorno ainda adotam práticas convencionais, com adubos químicos e agrotóxicos e sem controle da erosão.” Assim, não é possível evitar a contaminação do Ribeirão do Mosquito, que divisa a propriedade e faz parte de área de preservação de mananciais.

Hoje Diniz ainda mantém uma pequena área de pasto rotacionado para cerca de 30 ovelhas e 6 cavalos. “Todos os animais aqui morrem de velhos”, diz o sitiante, que teve um cavalo que viveu surpreendentes 31 anos. As ovelhas hoje contribuem para a retirada da lã, que a mulher de Guaraci, Cecília, usa para fazer tapetes e tecidos em cursos de tecelagem, com corantes naturais, tirados de plantas como urucum, barbatimão, anileira e curcuma.

O próximo passo agora é garantir a viabilidade da RPPN, atraindo investidores socioambientais interessados em contribuir com o plano de manejo, que todo proprietário de reservas do gênero tem de fazer. “Assim manteremos as atividades de educação ambiental com escolas e de visitas de pesquisadores interessados em conhecer mais a fundo o nosso trabalho”, diz. “Eles sempre constatam que, se bem tratada, a terra responde, e rápido.”

EcoDebate, 11/09/2012

 

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

NOVA IDADE MÉDIA? O RETROCESSO CULTURAL NO CIBERESPAÇO

Autora: Dora Incontri
 Tenho uma tese que ainda vou desenvolver melhor num livro ou em alguns artigos mais profundos: é a de que corremos o risco de mergulhar numa nova Idade Média, claro, diferente da que foi. Mas há sinais fortes e semelhantes à chamada Alta Idade Média que vai do século V até mais ou menos o ano mil, período da desagregação do Império Romano e do retrocesso da cultura, da civilização. Depois, a Baixa Idade Média não pode mais ser considerada como um período de trevas, pois houve o nascimento das Universidades, a retomada gradativa das cidades e do comércio, as catedrais góticas, as línguas europeias, nascentes em poesia e assim por diante.
 O que indica esse risco de novo mergulho medieval? A onda fundamentalista das religiões, deflagrando irracionalidade e fanatismo; a desagregação da linguagem, da música, da arte em geral; o desaparecimento da infância (veja-se o livro de Philippe Ariès, História Social da Criança e da Família, demonstrando que na Idade Média, as crianças eram adultas em miniatura e não eram vistas e tratadas como crianças, que é o que está acontecendo hoje, quando a mídia e a propaganda fazem da criança um pequeno, sensualizado e obeso consumidor!). Outro sinal de retrocesso é o brotar do misticismo fácil, das seitas irracionais e de uma espiritualidade light, indicando falta de consistência e conhecimento filosófico, podendo nos levar a superstições já cientificamente superadas.
As circunstâncias são outras, as características são outras, mas estamos caminhando a passos largos para o eclipse da cultura, da razão, das conquistas civilizatórias dos últimos séculos. É verdade que um pouco disso pode ser decorrência de um processo de resistência e desagrado com a civilização predatória, instalada pelo capitalismo. Mas o que se observa em grande escala (e não é só no Brasil, mas no mundo todo) é um recrudescimento da ignorância, um analfabetismo filosófico, literário, político, espiritual. A mediocridade está tomando conta.
Um dos sinais evidentes que observo diariamente na internet é a circulação crescente de frases soltas, de powerpoints coloridos, ralos e de autoajuda brega, de citações - que revelam uma pseudocultura: superficial, falsa e emprestada. Fico impressionada de ver quanta gente produz e reproduz fartamente frases que são atribuídas a Gandhi, Platão, Pitágoras, Confúcio, Buda, Dalai Lama, Clarice Lispector, Carlos Drummond, Saramago e assim vai. Ou seja, líderes espirituais antigos e contemporâneos, filósofos, literatos – todos originais, inteligentes e que deram suas contribuições importantes à história, são colocados no mesmo saco de superficialidade e besteirol. Quase nenhuma das frases que lhes são atribuídas na internet é deles mesmos! Mas ninguém consulta um livro, ninguém lê uma obra de fato sobre a vida ou sobre o pensamento de nenhum deles. Todo mundo repete frases prontas, pobres, vazias, como papagaios, sem nenhum compromisso com os autores, sem nenhum espírito crítico, sem nenhum cuidado de veracidade! Ou seja, estamos criando uma pseudocultura virtual, que consiste em repetir pensamentos ralos, que não formulamos e que atribuímos a pessoas inteligentes, que nunca disseram tais coisas. Nem pensamos e nem recorremos a quem de fato pensou, para aprendermos a pensar. Vamos papagaiando frivolidades. Isso vale para o Facebook, para os e-mails, para os blogs, para as apresentações que circulam por aí!
É tudo rápido, descartável, superficial, vazio.
Outro aspecto que revela a decadência da cultura é o aviltamento da linguagem, a degeneração dos idiomas (mais uma vez, o fenômeno não é só no Brasil). Neste texto mesmo haverá muitas palavras que algumas pessoas nunca viram, porque seu vocabulário é cada vez mais reduzido. Isso vale principalmente para os mais jovens. A língua é um instrumento delicado, harmonioso, embora vivo e dinâmico, que se estrutura a partir da expressão de um povo. Mas antes, essa expressão era tomada por cima. Ou seja, a linguagem culta, literária era o padrão a servir de medida. Hoje, dá-se o contrário. Ninguém mais conhece o padrão culto. As palavras são truncadas nas mensagens, nos e-mails, nos textos; a correção gramatical ausentou-se completamente – mesmo professores de português escrevem errado, nãosabem onde colocar uma crase, cometem deselegâncias na concordância! O vocabulário está cada vez mais restrito, pobre, desgastado. O que isso significa? Quanto menos palavras temos para nos expressar e quanto menos regras conhecemos e seguimos para estruturar a linguagem, mais nosso pensamento se torna pobre, por falta de capacidade de expressão; mais se torna feio,desajeitado, por falta de correção na escrita. Ou seja, estaremos caminhando para os grunhidos da caverna?
Conhecer as fontes do que secita, certificar-se da autoria de um texto, expressar-se bem, elegantemente, com um vocabulário farto – tudo isso faz parte de uma educação bem cuidada. E o problema é justamente esse. Não temos educação: temos manipulação da TV, dispersão na internet, excesso de jogos e msn e falta de livros, falta de conversas, falta de conhecimento em geral.
Mas nem tudo está perdido! Nãopenso que a internet seja um lugar demoníaco, que deva ser abandonado. Há sites, blogs, escritos inteligentes, bem feitos. Basta saber buscar, escolher, selecionar. Há ciência, filosofia, livros inteiros antigos e contemporâneos, já disponíveis no universo virtual. E é fantástico poder entrar numa biblioteca internacional e achar livros do século XVIII, XIX, XX, e baixá-los gratuitamente… poder entrar num museu virtual e ver obras de arte antigas… poder se associar a um site como Classics Online e ter acesso a 40 mil músicas de todos os gêneros! Poder folhear pela manhã no Iphone, jornais do mundo inteiro!
Por outro lado, poder escrever um poema, um bom texto, uma crônica e no mesmo instante colocá-los à disposição de milhares de pessoas, num blog, num site, divulgando no Facebook, no Twiter.
 Os recursos tecnológicos são fantásticos, as possibilidades são infinitas! Nós é que temos de ter cuidado para não mediocrizá-los, não torná-los uma distração tola e às vezes viciante!
Podemos e devemos fazer conscientemente nossa resistência cultural e só divulgar coisas realmente consistentes, procurando também fazermos algo pessoal, original e não apenas copiar o que outros dizem que alguém disse! E mais do que tudo, não devemos abandonar os livros, porque eles são ainda (embora nem sempre) a fonte da cultura mais profunda e mais saudável a nosso dispor.
Fonte: Fábio Oliveira – fabioxoliveira2007@gmail.co
                                  fabioxoliveira.blog.uol.com.br/

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

SOMOS BEM-VINDOS EM MARTE?

 
Autor: Frei Betto
Os ibéricos, dos séculos XV ao XVII, conquistaram boa parte do mundo graças às inovações tecnológicas de suas caravelas e o talento de cientistas estrangeiros. Exemplos são o genovês Cristóvão Colombo, que se pôs a serviço da coroa espanhola, e Américo Vespúcio, que se instalou em Sevilha e deu nome ao nosso Continente.
 O capitalismo neoliberal, com sede nos EUA, domina o mundo atual, unipolar, malgrado as fortes resistências. Não satisfeita, a voracidade estadunidense mira o espaço cósmico. A história do imperialismo se baseou em incursões por terra (romanos e Alexandre Magno), mar (Espanha e Portugal) e, agora, ar.
Após pisar na lua e fincar em seu solo a bandeira dos EUA (tivesse bom senso, a Casa Branca teria hasteado a da ONU), a Nasa aterrissa em Marte o robô Curiosity – após viajar 570 milhões de km em pouco mais de 8 meses, a um custo de US$ 2,5 bilhões (R$ 5 bilhões).
 Por fontes fidedignas, sei como os marcianos receberam o Curiosity.
 - Que diabos caiu em nosso território? – indagou Elysium à sua mulher Memnonia.
  - Pelo aspecto, parece lixo do planeta Água.
  - Aquele azul?
  - Sim, cujos habitantes o denominam equivocadamente de Terra, embora contenha 70% de água.
  - Não me parece lixo, Memnonia. Repare, é um equipamento articulado.
   - Talvez tenha vindo espionar a nossa civilização – suspeitou a mulher.
   - Isso não me preocupa. Lembra quando, na década de 1950, nossos discos voadores foram até lá?
  - Sim, Elysium, foi uma decepção. As imagens de TV captadas por nossas naves demonstraram que ali ainda não há vida inteligente.
  - De fato, em matéria de ciência e tecnologia os terráqueos estavam muito atrasados. Suas aeronaves ainda copiavam o formato dos pássaros, e, hoje, suas naves espaciais têm aspecto bélico e gastam muito combustível para romper a atmosfera.
  - O que me impressionou –observou Memnonia – foi o contraste entre a sofisticação de certos equipamentos e a miséria em que vivia tanta gente. Enquanto uns trafegavam em veículos de luxo, outros rastejavam pelas calçadas suplicando por comida. Como é possível uma civilização que não prioriza a vida de seus semelhantes?
  - Lembra que reparamos que, ao contrário do que acontece conosco, eles são visíveis uns aos outros? Nãotinham, como nós, o dom da invisibilidade. Ainda vivem muito apegados às esferas dos sentidos e da razão. Não irromperam na esfera da espiritualidade.
  - Elysium, se este aparato veio nos espionar, não vai obter muito além das propriedades de nosso solo e de nosso clima. Não poderá captar o avanço de nossa civilização.
  - Mas admito que eu gostaria de repassar aos terráqueos um pouco de nossa história. Talvez isso os ajudasse a evoluir.
  - Ora, Mamnonia, sabemos que há entre eles pessoas – e não são poucas – que também pregam o que os nossos patriarcas disseram. Infelizmente a maioria não lhes dá ouvidos.
  - Eles seriam mais felizes – enfatizou a mulher – se trocassem a devastação ambiental pela preservação; a apropriação privada pela partilha; a guerra pela paz; as armas pelas ferramentas; a opressão pela justiça.
  - Como foi positivo para nós trilhar esse caminho de sabedoria! Hoje, o alto grau de amorização de nosso povo permite-nos tamanha transparência, que tanto o nosso povo quanto a nossa natureza são invisíveis aos olhos alheios.
  - Você acha que devemos atirar pelo espaço esse aparato esdrúxulo?
  - Melhor não, Elysium. Preservemos a nossa identidade e a paz com os vizinhos. Não esqueça o que os terráqueos fizeram quando descobriram um Novo Mundo repleto de povos indígenas... Nossa invisibilidade nos dará proteção. Melhor deixar essa maquininha rodando por aí. Vai ser divertido vê-la restrita aos aspectos geológicos e climáticos do nosso planeta.
 - Você está certa, Memnonia. O amor que nos une e nos faz feliz não poderá ser captado, pois os terráqueos ainda terão um longo percurso até conquistar a globoamorização que reina entre nós.
Fonte: Fábio Oliveira