O CÉU DOS ÍNDIOS
Autor: Luiz Martins da Silva
Ao contrário dos primeiros
europeus a desembarcar por aqui, que buscavam o Paraíso no Além, os índios
americanos já viviam num Éden adâmico e não estavam muito preocupados com o dia
de amanhã, muito menos com uma vida post mortem. O Céu já era para eles a vida,
aqui e agora.
Contam cronistas que ao
tempo dos primeiros exploradores os nativos até colaboravam na sobrecarga das
naus, com madeiras e tudo o que queriam em grande quantidade, mas indagavam
candidamente sobre os motivos de tanto acúmulo, se a madeira não ia acabar, se
a floresta não ia desaparecer. Por que razão precisavam tanto de tudo e de uma
só vez?
Há uma passagem em que
ofereceram a Atahualpa, já sob as cordas (chegou a ser puxados pelas clavículas),
uma chance de se livrar da execução, aceitando a “palavra de Deus”. O imperador
inca tomou da Bíblia oferecida e a encostou na orelha. Nada ouvindo, atirou-a
longe, indignado. Selou, assim, a sua condenação. Tampouco compreendeu como os
que lhe aprisionavam seriam capazes de proporcionar a libertação de almas.
Mais escandaloso, no
entanto, soou para os ameríndios a ideia transmitida pelos colonizadores de que
alguém pudesse comprar e vender terras, rios e demais recursos naturais, algo
cujo controle e reverência atribuíam tão somente a divindades, era como se uma
pessoa qualquer pretendesse se igualar, por exemplo, ao Deus da Chuva.
Num poema em nada satírico,
o poeta norte-americano James Dickey (1923-1997) imaginou um Céu também para os
animais (The heaven of animals). Hora, porém de se perguntar como seria um Céu
para os índios, se já viviam no Paraíso. E que ironia, os homens que apareceram
propagando a necessidade de se preparar para um Céu depois da morte acabaram
por lhes transformar a vida num inferno em curto prazo.
Por estes dias, as redes
sociais estão repletas de apelos em favor de etnias sob ameaças de perdas de
terras e da própria vida. Há, de alguns anos para cá, um fenômeno macabro: a
prática do suicídio nas aldeias como uma forma de escape à perda de qualquer
sentido para a vida na Terra. Como se não bastassem os assassinatos, os
extermínios, o contágio de doenças, o alcoolismo, agora são os índios que tomam
a iniciativa de se autoeliminar.
Tragédias como a que vivem
os Guarani-Kaiowa remetem-me aos tempos de jovem repórter, quando era
responsável pela cobertura da Funai (Fundação Nacional do Índio) e viajava para
rincões para cobrir escaramuças entre índios e fazendeiros. Volta e meia o
“Sindicato da Morte” também dava cabo de religiosos que atuavam junto a
numerosas nações indígenas.
Em meados dos anos 70,
levantei um dado estatístico, na Funai: havia entre os índios brasileiros
missões de 50 diferentes linhagens religiosas, todas, evidentemente, tentando
salvar as almas dos índios e encaminhá-los para um Céu de beatitudes. Eu fico
me perguntando se não teria de ser o inverso, os brancos indo aprender com os
índios, como se pode viver no Paraíso, já, aqui e agora.
Luiz Martins da Silva é
jornalista e professor da Faculdade de Comunicação, da Universidade de
Brasília. Mestre em Comunicação pela UnB e doutor em Sociologia pela
Universidade Nova de Lisboa. Coordena o projeto SOS Imprensa da FAC/UnB. Como
jornalista, atuou no Jornal de Brasília, no O Globo e na revista Veja, entre
outros. Atuação e pesquisa nas áreas de jornalismo, jornalismo público,
comunicação pública e comunicação, ética na comunicação e mobilização social. É
poeta com vários livros publicados. Últimas publicações: “O jornalismo como
teoria democrática” e “Information, Communication and Planetary Citizenship”.
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