quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O PECADO MAIOR DO CAPITALISMO: O RISCO DE ECOCÍDIO E DO BIOCÍDIO

 

Leonardo Boff



  O capitalismo é um modo de produção social e uma cultura. Como modo de produção destruiu o sentido originário de economia que desde os clássicos gregos até o século XVIII significava a técnica e a arte de satisfazer as necessidades da oikos. Quer dizer, a economia tinha por objetivo atender satisfatoriamente as carências da casa, que tanto podia ser a moradia mesma, a cidade, o país quanto a casa comum, a Terra. Com sua implantação progressiva a partir do século XVII do sistema do capital - a expressão capitalismo não era usada por Marx, mas foi introduzida por Werner Sombart 1902 - muda-se a natureza da economia. A partir de agora ela representa uma refinada e brutal técnica de criação de riqueza por si mesma, desvinculada do oikos, da referência à casa. Antes pelo contrário, destruindo a casa em todas as suas modalidades. E a riqueza que se quer acumular é menos para ser desfrutada do que para gerar mais riqueza numa lógica desenfreada e, no termo, absurda.

   A lógica do capital é essa: produzir acumulação mediante a exploração. Primeiro, exploração da força de trabalho das pessoas, em seguida a dominação das classes, depois a submissão dos povos e, por fim, a pilhagem da natureza. Funciona aqui uma única lógica linear e férrea que a tudo envolve e que hoje ganhou uma dimensão planetária.

   Uma análise mesmo superficial entre ecologia e capitalismo identifica uma contradição básica. Onde impera a prática capitalista se envia ao exílio ou ao limbo a preocupação ecológica. Ecologia e capitalismo se negam frontalmente. Não há acordo possível. Se, apesar disso, a lógica do capital assume o discurso ecológico ou é para fazer ganhos com ele, ou para espiritualizá-lo e assim esvaziá-lo ou simplesmente para impossibilitá-lo e, portanto, destruí-lo. O capitalismo não apenas quer dominar a natureza. Quer mais, visa arrancar tudo dela. Portanto se propõe depredá-la.

   Hoje, pela unificação do espaço econômico mundial nos moldes capitalistas, o saque sistemático do processo industrialista contra natureza e contra a humanidade torna o capitalismo claramente incompatível com a vida. A aventura da espécie homo sapiens e demens é posta em sério risco. Portanto, o arquiinimigo da humanidade, da vida e do futuro é o sistema do capital com a cultura que o acompanha.

   Coloca-se assim uma bifurcação: ou o capitalismo triunfa ao ocupar todos os espaços como pretende e então acaba com a ecologia e assim põe em risco o sistema-Terra ou triunfa a ecologia e destrói o capitalismo ou o submete a tais transformações e reconversões que não possa mais ser reconhecível como tal. Desta vez não há uma arca de Noé que salve a alguns e deixe perecer os outros. Ou nos salvamos todos ou pereceremos todos.

   Esta é a singularidade de nosso tempo e a urgência das reflexões e dos alarmes que aqui são partilhados.

   Dizíamos que o capitalismo produziu ainda uma cultura, derivada de seu modo de produção assentado na exploração e na pilhagem... Toda cultura cria o âmbito das evidências cotidianas, das convicções inquestionáveis e, como tal, gesta uma subjetividade coletiva adequada a ela. Sem uma cultura capitalista que veicula as mil razões justificadoras da ordem do capital, o capitalismo não sobreviveria. A cultura capitalista exalta o valor do indivíduo, garante a ele a apropriação privada da riqueza, feita pelo trabalho de todos, coloca como mola de seu dinamismo a concorrência de todos contra todos, visa maximalizar os ganhos com o mínimo de investimento possível, procura transformar tudo em mercadoria, desde a mística, o sexo até o lazer para ter sempre benefícios e ainda instaura o mercado, hoje mundializado, como o mecanismo articulador de todos os produtos e de todos os recursos produtivos.

   Se alguém buscar solidariedade, respeito às alteridades, com-paixão e veneração face à vida e ao mistério do mundo não os busque na cultura do capital. Errou de endereço, pois ai encontra tudo ao contrário. George Soros, um dos maiores especuladores das finanças mundiais e profundo conhecedor da lógica da acumulação sem piedade (ele vive disso), afirma claramente que o capitalismo mundialmente integrado ameaça a todos os valores societários e democráticos, pondo em risco o futuro das sociedades humanas. Essa é, segundo ele, a crise do capitalismo que exige urgente solução para não irmos ao encontro do pior.

   Queremos mostrar como o capitalismo, como modo de produção e como cultura, inviabiliza a ecologia tanto ambiental, quanto social. Deixado à lógica de sua voracidade, pode cometer o crime da ecocídio, do biocídio e, no limite, do geocídio. Razão suficiente para os humanos que amam a vida e que querem herdar aos seus filhos e netos uma casa comum habitável se oporem sistematicamente às suas pretensões.

 1. Capitalismo e destruição da ecologia

   Comecemos com a ecologia ambiental e sua referência à lógica do capital. A esse respeito, os cenários acerca do futuro da Terra, na perspectiva do meio-ambiente e da qualidade de vida, são dramáticos. Grandes analistas confessam que o tempo atual se assemelha muito às épocas de grande ruptura no processo da evolução, épocas caracterizadas por extinções em massa (2). Efetivamente, a humanidade se encontra diante de uma situação inaudita. Deve decidir se quer continuar a viver ou se escolhe sua própria autodestruição.

   O risco não vem de alguma ameaça cósmica, mas da própria atividade humana. Pela primeira vez no processo conhecido de hominização -, o ser humano se deu os instrumentos de sua própria destruição. Criou-se o princípio de autodestruição que tem no princípio de responsabilidade sua contrapartida. De agora em diante a existência da biosfera estará à mercê da decisão humana. Para continuar a viver o ser humano deverá positivamente querê-lo.

   Os indicadores são alarmantes. Deixam transparecer pouco tempo para as mudanças necessárias. Estimativas otimistas estabelecem a data-limite o ano 2030-2034 (3). A partir daí, caso não se tomarem medidas urgentes e eficazes, a sustentabilidade do sistema-Terra não estará mais garantida.

   Precisamos mais do que nunca de sabedoria. Sabedoria, para priorizar as ações concertadas que visem a sustentabilidade da Terra como planeta.

   Entre outros, três são os nós problemáticos (3), criados pela ordem do capital, que devem ser desatados: o nó da exaustão dos recursos naturais, o nó da sustentabilidade da Terra e o nó da injustiça social mundial. Vamos por partes.

   a) O nó da exaustão dos recursos naturais

   Já há séculos, principalmente, embora não exclusivamente, sob o modo de produção capitalista, a Terra vem sendo sistematicamente depredada. A cada dia desaparecem para sempre 10 espécies de seres vivos. Desde o tempo do desaparecimento dos dinossauros 65 milhões de anos atrás nunca se viu tão rápida dizimação. Com eles some para sempre uma biblioteca de conhecimentos que a própria natureza sabiamente havia acumulado.

   A partir de l972 a desertificação no mundo cresceu igual ao tamanho de todas as terras cultivadas da China e da Nigéria juntas. Perdeu-se cerca de 480 milhões de toneladas de solo fértil, o equivalente às terras agricultáveis da Índia e da França combinadas. 65% das terras, um dia cultiváveis, já não o são. A irrigação extensiva associada à utilização de substâncias químicas leva à salinização das águas por não terem tempo de refazer os nutrientes perdidos.

   Metade das florestas existentes no mundo em l950 foram abatidas. Somente nos últimos 30 anos foram derrubados 600 mil km2 da floresta amazônica brasileira, o equivalente à Alemanha unida ou a duas vezes o Zaire.

   Os imensos reservatórios naturais de água, formados ao longo de milhões e milhões de anos, foram neste século sistematicamente bombeados e estão próximos à exaustão. Nos inícios do próximo milênio, a água potável será um dos recursos naturais mais escassos. Far-se-ão guerras para garantir o acesso às fontes de água potável.

   O petróleo e o carvão, formados ao longo de 100 milhões de anos e depositados nas profundezas da Terra ter-se-ão exaurido nos meados do próximo século. Tanto a água quanto o carbono foram sepultados cuidadosamente pela Terra para estabilizar seu clima. Agora foram trazidos à tona e devolvidos ao espaço com desequilíbrios que ainda não podemos adequadamente medir. Por volta do ano 2030 o cobre, a bauxita, o zinco, o fosfato e o cromato ter-se-ão extinguido quase totalmente.

   Por detrás deste processo de pilhagem, se oculta uma imagem reducionista da Terra. Ela é vista apenas como um reservatório morto de recursos a serem explorados. Não é contemplada como um supersistema sutilmente articulado em sistemas e subsistemas onde rochas, águas, atmosferas, micro-organismos, planetas, animais e seres humanos formam um todo orgânico e dinâmico com relações de interdependência e de sinergia que garantem a subsistência de todos e de cada um. A Terra não é respeitada em sua alteridade e autonomia nem se lhe reconhece nenhuma sacralidade. Muito menos ainda é amada como um superorganismo vivo, a Grande Mãe dos antigos, a Pacha Mama de nossos indígenas e a Gaia dos modernos cosmólogos. A humanidade sempre entendeu a Terra como algo vivo. Somente nos últimos séculos, dentro da cultura do capital pilhador, foi vista como algo inerte, um conjunto desarticulado de solos (continentes) e água (oceanos, lagos e rios).

   b) O nó da sustentabilidade da Terra

   Quanto de agressão aguenta a Terra sem perder seu equilíbrio interno e se desestruturar? Chuvas ácidas matam lagos e fazem mirrar as florestas. Dejetos químicos contaminam as fontes de água potável, os oceanos e envenenam os solos. Pesticidas entram na cadeia alimentar e afetam a saúde dos seres vivos e das gerações que virão. Lixo nuclear é especialmente perigoso. Muitas substâncias permanecem radioativas pelos próximos 100.000 anos. Não há no horizonte nenhuma tecnologia que nos possa proteger contra seus malefícios.

   As 60 mil armas nucleares construídas, num contexto de guerra mundial, se explodidas, podem originar o inverno nuclear. As finas partículas de fumaça provenientes das grandes queimadas por elas produzidas, junto com os elementos radioativos injetados na atmosfera, obscureceriam e resfriariam a Terra de forma mais aguda que nas eras glaciais do pleistoceno. Haveria um colapso da humanidade e de todo o sistema de vida, consequências perversas sempre negligenciadas pelas potências militaristas. Atualmente corremos o risco de que grupos terroristas tenham acesso à tecnologia das bombas e coloquem a humanidade e a Terra em situação de xeque-mate.

   Grande risco para a vida do planeta representa a destruição da camada de ozônio. Ela fica na estratosfera entre 30 a 50 km da superfície da Terra e, como escudo, protege a vida contra as irradiações ultravioletas que são letais para todos os organismos vivos. O esgarçamento desta camada de ozônio é provocado pelos clorofluorcarbonos (CFC). Quimicamente trata-se de um material inerte e inofensivo que entra como fluido nas geladeiras, no ar acondicionado, nos desodorantes spray, nos extintores e na produção de isopor. Entretanto, ao alcançar a camada de ozônio, os raios ultravioletas dividem as moléculas destes gases. O cloro liberado destrói o escudo de ozônio. Consequentemente todos os seres vivos ficam expostos aos raios ultravioletas. Estes produzem câncer de pele, catarata, debilitação do sistema imunológico, distorções na ADN, danos à agricultura e à fotossíntese que responde pela cadeia alimentar de toda a Terra.

   Outra ameaça importante é representada pelo aquecimento crescente da Terra, consequência do tipo de sociedade consumista de recursos que poluem. É o assim chamado efeito estufa. A queima de petróleo, de carvão e de florestas libera o dióxido de carbono. Este juntamente com outros gases como o metano, o flúor e o óxido de nitrogênio absorvem raios infravermelhos, formando uma espécie de estufa. Ela esquenta a atmosfera. No último século aumentou entre 0,3 e 0,6º C. o calor da Terra. Para os próximos 100 anos calcula-se um aumento de 1,5 º C a 5,5º C. Tais mudanças provocarão desastres descomunais como secas e o degelo das calotas polares. As inundações das costas marítimas, onde vivem 60% da população mundial, causariam milhões de emigrados e de vítimas. Muitas espécies de seres vivos não se adaptariam e morreriam. Temos um exemplo no poderoso efeito estufa de Vênus, revelado pela nave espacial soviética Venera. Ai se mostra sua superfície toda crespada pelo calor. O efeito estufa da Terra não poderia ter consequências semelhantes? Os pesquisadores já há tempos nos advertem acerca desta eventualidade.

   Que suportabilidade possui a Terra face a tantas agressões produzidas primordialmente pelo modo de produção capitalista? Ao longo do processo de sua formação, onde se verificaram imensas dizimações de espécies (na ordem de 80-90% no período cambriano há 570 milhões de anos), nosso planeta mostrou grande capacidade de resistência e regeneração. Agora, entretanto, teme-se que o efeito acumulativo das agressões chegue a um ponto crítico tal que quebre o equilíbrio físico-químico-biológico da Terra. Imensas catástrofes afetariam a biosfera e dizimariam milhões de seres humanos.

   c) O nó da injustiça social mundial

   Por fim, passemos à ecologia social: quanto de injustiça e violência aguenta o espírito humano? É injusto e sem piedade que, na atual ordem do capital mundializado, 20% da humanidade detenha 83% dos meios de vida (em l970 eram 70%) e os 20% mais pobres tenham que se contentar com apenas l,4% (em l960 era 2,3%) dos recursos. É injusto e cruel manter um bilhão de pessoas na extrema pobreza. É injusto e perverso deixar morrer anualmente 40 milhões de pessoas estritamente de fome. É injusto, perverso, cruel e sem piedade tolerar que l4 milhões de crianças morram anualmente antes de completar cinco dias de vida.

   Este cataclisma social não é inocente nem natural. É resultado direto de uma forma de organização econômico-política e social que privilegia uns poucos à custa da exploração e da miséria das grandes maiorias. Projetou-se um tipo de desenvolvimento sem medir as consequências sobre a natureza e sobre as relações sociais. Ele é altamente predatório e iníquo. Por isso constitui uma armadilha do sistema capitalista o assim chamado desenvolvimento sustentável.

   Quando analisado, ele representa uma contradição nos termos. A categoria desenvolvimento é tirada da área da economia, por suposto, daquela imperante, a capitalista. O desenvolvimento capitalista, na verdade, deveríamos dizer, crescimento, apresenta-se profundamente desigual. Por um lado cria acumulação apropriada por uns poucos à custa da exploração e do prejuízo das grandes maiorias. Esse crescimento pretende ser linear e sempre crescente.

   A categoria sustentabilidade provém de outro âmbito, da biologia e da ecologia. Sustentabilidade significa aqui a capacidade que um ecossistema possui de incluir a todos, de manter um equilíbrio dinâmico que permita a subsistência da maior biodiversidade possível. Mais que um processo linear, trata-se de um processo complexo, circular, de inter-retro-dependências, sem explorar ou marginalizar ninguém.

  Como se depreende, sustentabilidade e desenvolvimento capitalista se negam mutuamente; não é uma expressão que componha os interesses da produção humana com os interesses da conservação ecológica; antes pelo contrário, os nega e os destrói. O que se precisa é uma sociedade sustentável que se dá a si o desenvolvimento que precisa para satisfazer adequadamente as necessidades de todos, também do entorno biótico. O que se demanda é um planeta sustentável que possa manter seu equilíbrio dinâmico, refazer suas perdas e manter-se aberto a ulteriores formas de desenvolvimento.

   Se bem repararmos, o sistema do capital se mantém pelo medo. Para se perpetuar, recorre permanentemente à violência econômica. Quando preciso, também à agressão militar. Por isso a cada minuto destina um milhão e 800 mil dólares para armas de morte. Cobra ao grande Sul, a cada dois dias, cerca de l80.000 a 200.000 pessoas, sacrificadas no altar do deus Mamona (mercado mundial), como se sobre ele se lançasse, de dois em dois dias, uma bomba atômica como em l945 sobre Hieroshima-Nagasaki.

   O efeito perverso é inegável: a grande maioria da humanidade não tem sustentabilidade. Vive diariamente uma catástrofe. Tal violência configura uma agressão à Terra, pois os seres humanos são a própria Terra em sua dimensão consciente e inteligente. A injustiça social se mostra, assim, como uma injustiça ecológica.

   Voltamos a perguntar: quanto de violência a Terra pode ainda tolerar sem quebrar-se como sistema? Além de termos sido no passado suicidas, homicidas e etnocidas começamos agora a ser ecocidas. O sistema do capital não nos levará a sermos no futuro não muito distante também geocidas?

   2. Ou mudamos ou nos destruiremos

   Alcançamos nos dias atuais um ponto em que as virtualidades do nosso paradigma civilizacional, de perfil capitalista, não conseguem dar conta dos nós problemáticos acima apontados. Pelo contrário: dramatizam ainda mais a situação e aceleram as forças destrutivas.

   Entretanto, há sinais de esperança. Já a partir dos inícios deste século, o paradigma moderno começou, teoricamente, a ser erodido pela física quântica, pela teoria da relatividade, pela nova biologia, pela ecologia e pela filosofia crítica. Estava surgindo então um novo paradigma. Ele tem um caráter contrário àquele capitalista; é holístico, sistêmico, inclusivo, pan-relacional e espiritual. Entende o universo não como uma coisa ou justaposição de coisas e objetos. Mas como um sujeito no qual tudo tem a ver com tudo, em todos os pontos, em todas as circunstâncias e em todas as direções, gerando uma imensa solidariedade cósmica. Cada ser depende do outro, sustenta o outro, participa do desenvolvimento do outro, comungando de uma mesma origem, de uma mesma aventura e de um mesmo destino comum.

   O universo (desde as energias mais originárias e as partículas mais elementares até a mente humana) constitui uma comunidade de sujeitos, pois todos os seus componentes (o próprio universo como um todo orgânico), vêm caracterizados por aquilo que constitui um sujeito: a interatividade, a historicidade, a interioridade e a intencionalidade. Ele está inserido num imenso processo evolutivo, auto-criativo e auto-organizativo que se manifesta de muitas formas, seja como matéria e energia, seja como informação e complexidade, seja como consciência e interioridade.

  Ao invés de ser um universo atomístico, composto de partículas discretas - universo cuja complexidade cabe ser quebrada em componentes menores e mais simples - agora este universo é considerado como um todo relacional, inter-retro-conectado com tudo e maior que a soma de suas partes. A natureza da matéria, quando analisada com mais profundidade, não aparece como estática e morta, mas como uma dança de energias e de relações para todas as direções. A Terra não é mais vista como um conglomerado de matéria inerte (os continentes) e água (os oceanos, lagos e rios), mas como um superorganismo vivo, Gaia, articulando todos os elementos, as rochas, a atmosfera, os seres vivos e a consciência num todo orgânico, dinâmico, irradiante e cheio de propósito, parte de um todo ainda maior que nos inclui: o universo em cosmogênese, em expansão e perpassado de consciência.

   Esta visão fornece a base para uma nova esperança, para uma sabedoria mais alta e para um projeto civilizacional alternativo àquele dominante hoje, o do capitalismo mundialmente integrado. Ela nos permite passar do sentimento de perda e de ameaça, que o cenário atual nos provoca ao sentimento de pertença, de promessa e de um futuro melhor.

   Quatro eixos dão consistência ao novo paradigma, que se distancia enormemente do capitalismo: a busca da sustentabilidade ecológica e econômica, baseada numa nova aliança de fraternidade/sororidade para com a natureza e entre os seres humanos; a acolhida da diversidade biológica e cultural, fundada na preservação e no respeito a todas as diferenças e no desenvolvimento de todas as culturas; o incentivo à participação nas relações sociais e nas formas de governo, inspiradas na democracia entendida como valor universal a ser vivido em todas as instâncias (família, escola, sindicatos, igrejas, movimentos de base, nas fábricas e nos aparelhos de estado) e com todo o povo; o cultivo da espiritualidade como expressão da profundidade humana, que se sente parte do todo, capaz de valores, de solidariedade, de compaixão e de diálogo com a Fonte originária de todos os seres.

   Este novo paradigma não é ainda hegemônico. Perdura vastamente ainda aquele da modernidade burguesa e capitalista, atomístico, mecânico, determinístico e dualista, apesar de sua refutação teórica e prática. Perdura porque é funcional aos propósitos das classes dominantes mundiais. Elas mantém o povo e até pessoas de formação elevada na ignorância acerca da nova visão do mundo. Continua a impôr um sistema global cujos frutos maiores são a dominação, a exclusão e a destruição.

   Mas a crise ecológica mundial e o curto prazo que dispomos para as mudanças necessárias conferem atualidade e vigor ao novo paradigma. Ele é subversivo para a ordem vigente. Precisamos de uma nova revolução, uma revolução civilizacional. Ela será de natureza diversa daquelas nascidas a partir da revolução do neolítico, especialmente daquela propiciada pela cultura do capital. Terá por base e inspiração a nova cosmologia.

   Mas para isso, temos que mudar nossa forma de pensar, de sentir, de avaliar e de agir. Dentro do sistema do capital não há salvação para as grandes maiorias da humanidade, para os ecossistemas e para o planeta Terra. Devemos ter mais sabedoria que poder, mais veneração que saber, mais humildade que arrogância, mais vontade de sinergia que de auto-afirmação, mais vontade de dizer nós do que dizer eu como o faz sistematicamente a cultura do capital. Por estas atitudes os seres humanos poderão se salvar e salvar o seu belo e radiante Planeta.

   Esposamos a idéia de que estamos na crise de parto, do nascimento de um novo patamar de hominização. Podemos, sim, nos destruir. Criamos para isso a máquina de morte. Mas ela pode ser sustada e transformada. O mesmo foguete gigante que transporta ogivas atômicas, pode ser usado para trocar a rota de asteróides ameaçadores da Terra. É a hora de darmos o salto de qualidade e inaugurarmos uma aliança nova com a Terra. A chance está criada. Depende de nós sua realização feliz ou o seu inteiro fracasso. Desta vez não nos é permitido nem protelar nem errar de objetivo.

   Rejeitamos a idéia de que os 4,5 bilhões de anos de formação da Terra tenham servido a sua destruição. As crises e o sofrimento se ordenam a uma grande aurora. Ninguém poderá detê-la. Uma nova revolução civilizacional está por nascer e já dá os primeiros vagidos. De uma época de mudança passamos à mudança de época.

   3. Que sonhos nos orientam?

   Uma nova civilização surge quando se encontram respostas concretas às seguintes demandas, deixadas de lado pela ordem capitalista: Que utopias nos abrem o futuro? Que valores novos dão sentido à nossa vida pessoal e social? Que práticas novas mudam as relações sociais? Que cuidado desenvolvemos para com a natureza e que benevolência e compaixão suscitamos para com todos os seres da criação? Que novas tecnologias utilizamos que não neguem a poesia e a gratuidade? Que fraternidade e sororidade estabelecemos entre todos os povos e culturas? Que nome damos ao Mistério que nos circunda e com que símbolos, festas e danças o celebramos? Numa palavra: quais são os sonhos que nos dão esperança?

   Os sonhos são da maior importância. Morrem as ideologias e envelhecem as filosofias. Mas os sonhos permanecem. São eles o húmus que permite continuamente projetar novas formas de convivência social e de relação para com a natureza. Com acerto escrevia o cacique pele vermelha Seattle, ao governador Stevens, do Estado de Washington em l856, quando este forçou a venda das terras indígenas aos colonizadores europeus. O cacique, com razão, não entendia por que se queria comprar a terra, a aragem, o verde das plantas e o esplendor da paisagem. Neste contexto refletia que os peles vermelhas compreenderiam o por quê e a civilização dos brancos "se conhecessem os sonhos do homem branco, se soubessem quais as esperanças que transmite a seus filhos e filhas nas longas noites de inverno e quais as visões de futuro que oferece para o dia de amanhã".

   Qual é o nosso sonho? Que esperança transmitimos aos jovens? Que visões de futuro ocupam as mentes e o imaginário coletivo através das escolas, dos meios de comunicação e de nossa capacidade de criar valores?

   As respostas a estas indagações geram um novo padrão civilizatório, radicalmente diferente daquele capitalismo. Descendo ao concreto do dia-a-dia, face às transformações que atingem os fundamentos de nossa civilização atual indagamos: Quais são os atores sociais que propõem um novo sonho histórico e desenham um novo horizonte de esperança?

   Quem são os sujeitos coletivos gestores da nova civilização? Sem detalharmos a resposta podemos dizer que eles se encontram em todas as culturas e em todos os quadrantes da Terra. Eles irrompem de todos os estratos sociais e de todas as tradições espirituais. Eles estão em todas as partes. Mas principalmente são os que se sentem insatisfeitos com o atual modo de viver, de trabalhar, de sofrer, de se alegrar e de morrer, em particular, os excluídos, oprimidos e marginalizados. São aqueles que, mesmo dando pequenos passos, ensaiam um comportamento alternativo e enunciam pensamentos criadores. São ainda aqueles que ousam organizar-se ao redor de certas buscas, de certos níveis de consciência, de certos valores, de certas práticas e de certos sonhos, de certa veneração do Mistério e juntos começam a criar visões e convicções que irradiam uma nova vitalidade em tudo o que pensam, projetam, fazem e celebram.

   Por tais sendeiros desponta a nova civilização que será de agora em diante não mais regional, mas coletiva e planetária, e, esperamos, que signifique a superação histórica do capitalismo e, por isso, mais solidária, mais ecológica, mais integradora e mais espiritual.

   4. A civilização da re-ligação

   Que nome vamos dar ao novo que está emergindo? Ensaiamos uma resposta: será uma civilização mais sintonizada com a lei fundamental do universo que é a panrelacionalidade, a sinergia e a complementaridade, valores sistematicamente negados pela cultura do capital. Será, numa palavra, a civilização da re-ligação de tudo com tudo e de todos com todos (11). Por isso será uma civilização que dará centralidade à re-ligião, não simplesmente como uma instituição consagrada, mas como aquela instância que se propõe a re-ligar todas as coisas entre si porque as vê re-ligadas ubilicalmente à Fonte de todo ser. Esta civilização será re-ligiosa ou não será. Pouco importa o tipo de religião, ocidental, oriental, antiga, moderna. Com tanto que seja aquela experiência radical que consiga re-ligar todas as coisas e gestar um sentido de totalidade e de integração. Então poderá surgir a civilização da etapa planetária, da sociedade terrenal, a primeira civilização da humanidade como humanidade.

   Sentir-nos-emos todos enredados numa mesma consciência coletiva, numa mesma responsabilidade comum, dentro de uma mesma e única arca de Noé que é a nave espacial azul-branca, a Terra. Esta nova civilização não é apenas um desiderato e um sonho ridente. Ela está em curso. Queremos apenas nos deter num poderoso sinal: a mundialização e a globalização.

   Trata-se de um processo irreversível. Representa indiscutivelmente uma etapa nova na história da Terra e do ser humano. Estamos rumando para a constituição de uma única sociedade-mundo, uma república global, que mais e mais demanda uma gestão central para as questões que interessam a todos os humanos como a alimentação, a saúde, a moradia, a educação a comunicação, a paz e a salvaguarda da Terra.

   É verdade que estamos ainda na idade de ferro deste processo. É a fase da globalização competitiva que não inaugurou ainda a globalização cooperativa, pois ela se realiza sob o signo do econômico de molde capitalista, portanto, com contradições e conflitos provocados pela concorrência, pela vontade de acumulação desenfreada, de lucro a qualquer preço e pela luta de classes a nível mundial. Este modo de produção, hoje mundialmente articulado, transforma tudo em mercadoria, do gene humano à informação, do sexo à mística. A mercadoria, pela habilidade do marketing, vira um fetiche para induzir ao consumo e visar o lucro.

   Precisamos de uma outra economia que se estruture ao redor da produção do suficiente para todos, seres humanos e demais seres vivos da criação. A economia imperante, do crescimento crescente e linear, faz violência à Terra e é parcamente participativa e, por isso, injusta. Mas somente se alcançará esta nova economia política caso predomine uma outra escala de valores. Ao invés do egoísmo pessoal e coletivo, do lucro individual e empresarial deve prevalecer a solidariedade, a participação e a parceria. No modelo vigente de concorrência e de triunfo do mais forte, somente um lado ganha. Todos os outros perdem. No novo modelo sonhado e possível, todos ganham e ninguém perde, também ninguém é vítima de exclusão porque tudo será estruturado ao redor da vida, da sinergia e da cooperação. Então, sim, teremos a globalização cooperativa e sociedades nas quais todos podem caber.

   Mas, quer queiramos ou não, está já se anunciando o dia em que a mundialização não será só econômica. Far-se-á também sob o signo da ética, do senso da com-paixão universal, da descoberta da família humana e das pessoas dos mais diferentes povos, como sujeitos de direitos incondicionais, direitos que não dependem do dinheiro que temos no bolso, nem da cor de nossa pela, nem da religião que professamos nem do time de futebol para o qual torcemos. Estaremos todos sob o mesmo arco-íris da solidariedade, do respeito e valorização das diferenças e movidos pela amorização que nos faz a todos irmãos e irmãs. Será a era ecozóica como alguns já o     formularam.

   Far-se-á também na esfera da política que deverá reconstruir as relações de poder, não mais na forma de dominação/exploração sobre as pessoas e a natureza, mas na forma da mutualidade biofílica (=reciprocidade entre os seres vivos) e da colaboração entre todos os povos, base para a convivência coletiva em justiça, em paz e em aliança fraternal/sororal com a natureza. Ela deverá se organizar ao redor de uma meta comum: garantir o futuro do sistema-Terra, e as condições para o ser humano poder continuar a viver e a se desenvolver como já vem fazendo há cerca de oito milhões de anos.

   Por fim haverá uma mundialização da experiência do Espírito no cultivo das energias espirituais que pervadem o universo, trabalham a profundidade humana e das culturas e reforçam a sinergia, a solidariedade, o amor à vida a partir dos mais ameaçados e a veneração do Mistério inefável que tudo gera, tudo perpassa e tudo sustenta.

   Estamos diante de um experimento sem precedentes na história da humanidade. O futuro, para tornar-se presente, não poderá ser a continuação do passado, nem uma nova expressão da cultura do capital. Este nos conduziria ao destino dos dinossauros que abruptamente desapareceram.

   Essa é a grande lição que devemos tirar: Ou mudamos ou perecemos. Ou trilhamos o caminho de Emaus da partilha e da hospitalidade para com todos os habitantes da nave-espacial Terra ou então experimentaremos o caminho da Babilônia, da tribulação da desolação. Desta vez não nos é permitida a ilusão acerca da gravidade da situação atual.

   Entretanto, vigora uma inarredável esperança. Desde que surgiram os vertebrados há 570 milhões de anos e em sua sequência o homo sapiens e demens, a Terra conheceu l5 grandes dizimações nas quais seu capital biótico foi quase dizimado. Mas a vida sempre triunfou. Cada vez pôde refazer-se. Como numa espécie de vendetta da própria evolução, cresceu a biodiversidade. Essa lógica da seta do tempo evolucionário se mantém para a situação atual. Por isso mantemos fundada esperança de que a solidariedade triunfa sobre o individualismo capitalista e a vida se sobrepõe à morte, fazendo-a um momento transformador de sua própria dinâmica vital, como a evolução, em seu já longo caminhar, o comprova.

   E chegaremos a uma etapa civilizatória a partir da qual olharemos para o passado capitalista como um momento sombrio da humanidade, esquecida de sua própria essência feita de relações, de cuidado, de enternecimento e de sentido de pertença a todos os seres e ao inteiro universo. Agora libertada deste pesadelo, ela poderá evoluir conjuntamente com os demais seres e dentro de processos sociais nos quais seja menos difícil expressarmos nossa veneração, nossa amizade e nosso amor.

Fonte: Fábio Oliveira – fabioxoliveira2007@gmail.com

                                  Fabioxoliveira.blog.uol.com.br/




sábado, 17 de setembro de 2011

CONTRIBUIÇÃO DA AMÉRICA LATINA PARA UMA GEOSOCIEDADE

Leonardo Boff, Teólogo e Filósofo

Por todas as partes no mundo cresce a resistência ao sistema de dominação do capital globalizado pelas grandes corporações multilaterais sobre as nações, as pessoas concretas e sobre a natureza. Está surgindo, bem ou mal, um design ecologicamente orientado por práticas e projetos que já ensaiam o novo. A base é sempre a economia solidária, o respeito aos ciclos da natureza, a sinergia com a Mãe Terra, a economia a serviço da vida e não do lucro e uma política sustentada pela hospitalidade, pela tolerância, pela colaboração e pela solidariedade entre os mais diferentes povos, demovendo destarte as bases para o fundamentalismo religioso e político e do terrorismo que assistimos nos EUA e agora na Noruega.

Entre muitos projetos existentes na América Latina como a economia solidária, a agricultura orgânica familiar, as energias alternativas limpas, a Via Campesina, o Movimento Zapatista e outros queremos destacar dois pela relevância universal que representam: o primeiro é o “Bem Viver” e o segundo a “Democracia Comunitária e da Terra”, como expressão de um novo tipo de socialismo.

O “Bem Viver”está presente ao longo de todo o continente Abya Yala (nome indígena para o Continente sul americano), do extremo norte até o extremo sul, sob muitos nomes dos quais dois são as mais conhecidos: suma qamaña (da cultura aymara) esuma kawsay (da cultura quéchua). Ambas significam: “o processo de vida em plenitude”. Esta resulta da vida pessoal e social em harmonia e equilíbrio material e espiritual. Primeiramente é um saber viver e em seguida um saber conviver: com os outros, com a comunidade, com a Divindade, com a Mãe Terra,com suas energias presentes nas montanhas, nas águas, nas florestas, no sol, na lua, no fogo e em cada ser. Procura-se uma economia não da acumulação de riqueza mas da produção do suficiente e do decente para todos, respeitando os ciclos da Pacha Mama e as necessidades das gerações futuras.

Esse “Bem Viver” não tem nada a ver com o nosso “Viver Melhor” ou “Qualidade de Vida”.O nosso Viver Melhor supõe acumular meios materiais, para poder consumir mais dentro da dinâmica de um progresso ilimitado cujo motor é a competição e a relação meramente de uso da natureza, sem respeitar seu valor intrínseco e sem se reconhecer parte dela.  Para que alguns possam viver melhor, milhões têm que viver mal.

O “Bem Viver” não se identifica simplesmente com o nosso “Bem Comum”, pensado somente em função dos seres humanos em sociedade, num antropo e sociocentrismo inconsciente. O “Bem Viver” abarca tudo o que existe, a natureza com seus diferentes seres, todos os humanos, a busca do equilíbrio entre todos também com os espíritos, com os sábios (avôs e avós falecidos), com Deus, para que todos possam conviver harmonicamente. Não se pode pensar o “Bem Viver” sem a comunidade, a mais ampliada possível, humana, natural, terrenal e cósmica. A “minga” que é o trabalho comunitário, expressa bem este espírito de cooperação.

Essa categoria do “Bem Viver” e do “Viver Bem” entrou nas constituições do Equador e da Bolívia. A grande tarefa do Estado é poder criar as condições deste “Bem Viver” para todos os seres e não só para os humanos.

Esta perspectiva, nascida na periferia do mundo, com toda sua carga utópica, se dirige a todos, pois é uma tentativa de resposta à crise atual. Ela poderá garantir o futuro da vida, da humanidade e da Terra.

A outra contribuição latino americana para um outro mundo possível é a “Democracia Comunitária e da Terra”. Trata-se de um tipo de vida social, existente nas culturas da Abya Yala, reprimida pela colonização mas que agora, com o movimento indígena resgatando sua identidade, está atraindo o olhar dos analistas. É uma forma de participação que vai além da democracia clássica representativa e participativa, de cunho europeu. Ela as inclui, mas aporta um elemento novo: a comunidade como um todo; esta participa na elaboração dos projetos, de sua discussão, da construção do consenso e de sua implementação. Ela pressupõe já uma vida comunitária estabelecida na população.

Ela se distingue do outro tipo de democracia por incluir toda a comunidade, a natureza e a Mãe Terra. Reconhecem-se os direitos da natureza, dos animais, das florestas, das águas, como aparece nas constituições novas do Equador e da Bolívia. Faz-se uma ampliação da personalidade jurídica aos demais seres,especialmente à Mãe Terra. Pelo fato de serem vivos, possuem um valor intrínseco e são portadores de dignidade e direitos e por isso são merecedores de respeito.

A democracia será então sócio-terrenal-planetária, a democracia da Terra. Há os que dizem: tudo isso é utopia. E de fato é. Mas uma utopia necessária. Quando tivermos superado a crise da Terra (se a superarmos) o caminho da Humanidade seria este: globalmente nos organizarmos ao redor do “Bem Viver” e de uma “Democracia da Terra”, da “Biocivilização” (Sachs). Já existem Sinais antecipadores deste futuro.

Fonte: Fábio Oliveira – fabioxoliveira2007@gmail.com

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