segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O POVO QUE AMO

Autor: Rubem Alves
 “Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece”, observou Nietzsche.
 É o meu caso. Muitos pensamentos meus, eu guardei em segredo. Por medo. Alberto Camus, leitor de Nietzsche, acrescentou um detalhe acerca da hora em que a coragem chega: “Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos”.
 Tardiamente. Na velhice. Como estou velho, ganhei coragem. Vou dizer aquilo sobre o que me calei: “O povo unido jamais será vencido”, é disso que eu tenho medo.
 Em tempos passados, invocava-se o nome de Deus como fundamento da ordem política. Mas Deus foi exilado e o “povo” tomou o seu lugar:  a democracia é o governo do povo. Não sei se foi bom negócio; o fato é que a vontade do povo, além de não ser confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta ver os programas de TV que o povo prefere.
 A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica. Nada mais distante dos textos bíblicos.
 Na Bíblia, o povo e Deus andam sempre em direções opostas. Bastou que Moisés, líder, se distraísse na montanha para que o povo, na planície, se entregasse à adoração de um bezerro de ouro. Voltando das alturas, Moisés ficou tão furioso que quebrou as tábuas com os Dez Mandamentos.
 E a história do profeta Oséias, homem apaixonado! Seu coração se derretia ao contemplar o rosto da mulher que amava! Mas ela tinha outras idéias. Amava a prostituição. Pulava de amante e amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão a perdão. Até que ela o abandonou. Passado muito tempo, Oséias perambulava solitário pelo mercado de escravos.
 E o que foi que viu? Viu a sua amada sendo vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: “Agora você será minha para sempre”. Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor de Deus.
 Deus era o amante apaixonado. O povo era a prostituta. Ele amava a prostituta, mas sabia que ela não era confiável. O povo preferia os falsos profetas aos verdadeiros, porque os falsos profetas lhe contavam mentiras. As mentiras são doces; a verdade é amarga.
 Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo. No tempo dos romanos, o circo eram os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram. Os cristãos, de comida para os leões, se transformaram em donos do circo.
 O circo cristão era diferente: judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas. As praças ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com o cheiro de churrasco e os gritos. Reinhold Niebuhr, teólogo moral protestante, no seu livro “O Homem Moral e a Sociedade Imoral” observa que os indivíduos, isolados, têm consciência. São seres morais. Sentem-se “responsáveis” por aquilo que fazem. Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciada pelas emoções coletivas.
 Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo tornam-se capazes dos atos mais cruéis. Participam de linchamentos, são capazes de pôr fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da torcida do time rival. Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral. O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo.
 Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da coletividade. É sobre esse pressuposto que se constrói a democracia.
 Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão. Quem decide as eleições e a democracia são os produtores de imagens. Os votos, nas eleições, dizem quem é o artista que produz as imagens mais sedutoras. O povo não pensa. Somente os indivíduos pensam. Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam a ser assimilados à coletividade. Uma coisa é a massa de manobra sobre a qual os espertos trabalham.
 Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo. Jesus foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás.
 Durante a revolução cultural, na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar. O nazismo era um movimento popular. O povo alemão amava o Führer. O povo, unido, jamais será vencido!
 Tenho vários gostos que não são populares. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos. Mas, que posso fazer? Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio; não gosto de churrasco, não gosto de rock, não gosto de música sertaneja, não gosto de futebol. Tenho medo de que, num eventual triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos e a engolir sapos e a brincar de “boca-de-forno”, à semelhança do que aconteceu na China.
 De vez em quando, raramente, o povo fica bonito. Mas, para que esse acontecimento raro aconteça, é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute: “Caminhando e cantando e seguindo a canção”. Isso é tarefa para os artistas e educadores. O povo que amo não é uma realidade, é uma esperança.
 Fonte: Fábio Oliveira – fabioxoliveira2007@gmail.com
                                  fabioxoliveira.blog.uol.com.br/

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

UM BALÃO VAI EXPLODIR NA EUROPA

Autor: Mauro Velado Neto
    Alguém está assoprando um balão na Europa. A boca dessa esfera está na Grécia. Pela lógica, essa bexiga se expande até seu ponto crítico, quando explode. E aí surgem as consequências que se alastram potencialmente para diversos países, vinculados ao mesmo sistema econômico.   
     A mídia tem dado extenso noticiário sobre tal situação. Mas é preciso que se identifique claramente quem é esse Alguém que está assoprando, assoprando. É a isso que nos propomos fazer nas linhas que se seguem.
    O sistema econômico, sobre o qual se assenta a sociedade ocidental predominante, com especificidade na região da União Europeia que adotou a moeda única — o Euro —, é uma estrutura capitalista, vale dizer: de ganância e mais ganância. Daí vem em primeiro lugar — como objetivo único de vida —, a obtenção de lucro financeiro, isto é, renda parasitária  baseada na necessidade essencial do conjunto produtivo, constituído pelo povo, geralmente não pensante por ter a mente aprisionada pela mídia.  
    Em palavras claras, a sistemática é a seguinte: os Bancos são instituições que guardam o dinheiro da gente miúda. Geralmente, esse bem não sai do Banco em suas transações. Com isso, esse Estabelecimento fica entesourado. E eles são protegidos imoralmente pelos Governos nacionais, pois é neles que estes se abastecem para navegar em riquezas. Essas duas instituições têm relações financeiras simbiônticas.
    Acontece que, por consequência do império de ganância que reina na sociedade, alguns ficam com dinheiro sobrando, isto é, não necessário para viver. Aplicam esse excesso no Banco e se tornam investidores. Na verdade, o Banco é apenas um intermediário. Quem recebe esse sangue financeiro é o governo. Como? Os governos, além dos altíssimos impostos a que submetem as atividades produtivas, gasta irresponsavelmente muito mais do que arrecada. As vasilhas governamentais têm muitos furos por onde escapam fortunas.
    Mas como compensa essa diferença de insensatez? Pede (exige) empréstimo ao Banco, por prazo variável que pode ser por cinco ou dez anos. O Estabelecimento fica satisfeito porque transfere o dinheiro dos investidores para o governo, um cliente perene e soberano que paga em dia. Na ocasião, o Banco desconta os juros — seu lucro — e fica aguardando o próximo pedido de empréstimo. Todos os governos agem dessa forma. É desse disponível que os políticos fazem as farras absurdas, inclusive esbanjamentos e custos de olimpíadas espetaculares que só servem para enriquecer terceiros.
    No dia de vencimento de um desses papéis — notas promissórias, melhor dizendo —, o governo paga com outra promissória de valor igual, acrescida dos juros combinados. E assim, vai tocando.
    Muito bem. A Grécia se exacerbou nessa prática. Ficou devendo exageradamente mais do que sua capacidade de pagar. Tudo como resultado de uma farra de dinheiro dos aplicadores, aqueles que tinham dinheiro sobrando. Esse procedimento, um pouquinho menos intenso, também é ou foi executado pela Itália, Espanha, Portugal e demais países por esse mundo afora.
    Acontece que os Bancos comerciais, os Bancos Centrais, governos representativos do sistema e demais instituições financeiras estão enxergando perdas de investimentos próprios e de terceiros nessa situação. Já concordaram com um prejuízo de cem bilhões de euros a troco de certas condições que lhes iriam repor o prejuízo mais para o futuro.
    Isso não vai dar certo. Por quê? Porque não existem milagres. A única solução que vemos é a seguinte: a realidade. Isso significa que o governo grego declare simplesmente o calote, isto é, o simples não pagamento do que deve. Nada de significativo vai ocorrer. Vai perder dinheiro quem o tem sobrando. Os outros perderão empregos e desordens políticas e sociais. Mas isso tudo seria consequência de uma situação econômica em que o dinheiro não tem apenas a função social que lhe é própria, a de ganhar sem trabalhar.
  Fonte: Folha de Goiás
 

 

   







 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

ALHEIAMENTO DO POVO PELA ALA DOMINANTE

Autor: André Marques
Trago aqui noções básicas sobre como funciona a alienação que tanto é citada em rodas de conversa e sites de mídia alternativa. Se você ainda está por fora de o que seja essa palavra tão comentada e repudiada, venho dar uma mão para você entendê-la.
Alienação, segundo os dicionários é o estado de separação ou alheação da pessoa de alguma coisa que lhe pertencia ou a que pertencia e a transferência dessa coisa para outra pessoa ou entidade. Se você está alienado da sociedade, é porque está separado dos problemas coletivos e transferindo sua responsabilidade sócio-política aos outros. Sendo alienado, você não participa diretamente da edificação da integridade social do país, mesmo que esteja participando da dinâmica econômico-financeira da região e do país como um empregado ou empresário e pagando impostos, formas apenas indiretas de participação social.
A alienação social, política e cultural que tenho grandes vontades de combater ocorre quando o sujeito vive alheio, na maioria das vezes por indução cultural constante, aos problemas inerentes à sociedade, à política e também aos aspectos culturais de implicações questionáveis. Um alienado não está nem aí se a violência explode no seu bairro – exceto quando é assaltado, claro –, se os ônibus da cidade estão com a passagem cara e vivem superlotados nas horas de rush, se animais e ecossistemas são trucidados com seus hábitos alimentares e consumistas ou se a corrupção está galopando em Brasília ou na assembléia legislativa de seu estado. Nada disso lhe interessa genuinamente, o que realmente vale pra ele são os últimos capítulos da novela, os momentos sensuais do reality-show, o megahit musical da moda ou, no caso do religioso, o que vale é o futuro após a morte num maravilhoso e paradisíaco mundo do além, mesmo que isso seja obtido com reclusão e auto-segregação social num ato de se auto-alienar do mundo real. Essa é a alienação.
De trás para frente, ela é cultural porque envolve essa gama de aspectos culturais em detrimento de opções, digamos, mais edificantes, como a literatura e a troca de idéias com o próximo. Política porque o alienado diz estufando o peito que odeia política e não quer se meter em nada que denote atos políticos, mesmo sendo estes os norteadores de qualquer sociedade e dos mais diferentes aspectos da vida de qualquer ser humano. E social porque há a não-preocupação, numa inválida e antiética isenção, com os problemas sociais das pessoas desde de sua comunidade até do universo populacional de seu país.
A manutenção do povo sob esse controle cultural e intelectual permite, entre outras coisas, que políticos mal-encarados continuem fazendo o que bem querem em Brasília, empresários expandam seus empreendimentos sobre espaços naturais, os 10% mais ricos da população continuem abocanhando cerca de metade das riquezas brasileiras, os bispos de pseudo-igrejas mal-intencionadas continuem acumulando fortunas com dízimos dos fiéis enganados, pecuaristas permaneçam lucrando alto sobre a morte massiva de animais sofredores e oligarquias detenham perpetuamente o tão desejado poder político. Tudo isso é muito benéfico pra manutenção do estado de riqueza e opulência dessas turmas.
A elite brasileira faz de tudo pra não perder sua hegemonia perante o povo. Posso chamar essa turma de Ala Dominante, já que exercem de fato uma dominação sobre o povo. Compreende todos aqueles que deixam evidente que se beneficiam da alienação e de suas implicações e gostam disso. Inclui políticos, megaempresários, magnatas da comunicação, bispos, latifundiários e outros poderosos. Devo relevar que não são todas as pessoas que têm esses empregos que são genuinamente interessadas na “fuleiragem”, há muitos sujeitos de bem que tanto não desejam o sustento de poder pelo controle da pirâmide sócio-econômica como manifestam consciência positiva e, por boa vontade, financiam ou tutelam atividades de responsabilidade. Só não dá pra listar com toda certeza os nomes dos verdadeiros benfeitores.
Contra o poderio da Ala Dominante, o que se pode fazer é continuar esclarecendo as pessoas, propagando a conscientização, de modo que numa época mais próxima possível haja a transformação da vontade popular de suplantar os interesses dominantes em práticas de cidadania.
Fonte: : Fábio Oliveira – fabioxoliveira2007@gmail.com





terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

SHEYLA JURUNA

Autora:  Eliane Brum

No início deste ano, Sheyla Juruna viajou pela Europa para levar sua voz contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu. Em agosto, durante uma entrevista em Altamira, no Pará, eu perguntei a ela o que tinha achado do que viu. Ao fazer a pergunta, imaginava escutar sobre o assombro de uma indígena criada na Amazônia diante da arquitetura e da arte que povoam as ruas e os museus das principais capitais europeias. Afinal, deslumbramento é a reação habitual de quem viaja a países como a França. Ao me responder, uma sombra passou pelo rosto de Sheyla, uma bela mulher de 37 anos com os traços bem marcados de sua etnia e olhos e cabelos bem pretos. A sombra passou e não foi embora. Para meu espanto, Sheyla assim respondeu à minha pergunta:

Eu estranhei. Fiquei triste e oprimida. Não consegui enxergar beleza. É um mundo de concreto. Terrível. Só conseguia pensar no que havia antes que foi destruído para que aquilo tudo pudesse existir. Só conseguia pensar nos povos que viviam lá antes e viraram História.

Vários filósofos já escreveram sobre a importância essencial do espanto para alcançar o outro e construir conhecimento. E nós, jornalistas, aprendemos isso na prática. O melhor costuma nos chegar pelo espanto. Pelo menos, foi assim que me senti diante de Sheyla Juruna. Bem espantada, porque a beleza arquitetônica das capitais e cidades históricas da Europa sempre me elevaram – jamais me oprimiram. E ali estava aquela mulher, com uma sombra instalada no rosto bonito, me desvelando outro jeito de ver o mundo, nascido de uma experiência totalmente diversa. Para Sheyla, forjada na lógica da destruição, ao deparar-se com as capitais europeias o que ela vê é o que não mais está lá. Então, ela diz:

Nós, indígenas do Xingu, não queremos virar História. Nós queremos permanecer vivos, nós queremos continuar.

O mais eloquente para Sheyla Juruna ao conhecer a Europa é a ausência. Porque a experiência de Sheyla mostra que, para que um mundo possa ser construído, outro tem de ser destruído. E o mundo destroçado, ontem como hoje, é sempre o dela. E é por conta desta nova tentativa de destruição que Sheyla fez o caminho inverso dos navegadores portugueses e desembarcou na Europa. E ali se sentiu oprimida pelo que não enxergou.

 Quem é Sheyla Juruna, que nos enriquece com o olhar do avesso? Ela é uma indígena cuja cultura foi tão dilacerada que hoje, para alertar o Brasil e o mundo da devastação que Belo Monte vai causar, precisa fazer isso na língua dos dominadores, já que a sua lhe foi roubada. Quando sua bisavó tinha nove anos, seu povoado foi incendiado pelos brancos que ocuparam a Amazônia no ciclo da borracha. Para não ser morta junto com sua família, passou a noite escondida numa castanheira, na floresta. Quando amanheceu, continuou fugindo pela mata até deparar-se com um seringal. Foi então “amansada” pelo patrão. Proibida de falar a língua do seu povo, seu nome também foi apagado. E este silêncio foi sendo transmitido de geração para geração de mulheres. Até Sheyla.

Sete anos atrás, à beira do caixão da avó, filha desta primeira vítima da ocupação da Amazônia, Sheyla jurou lutar pela floresta que representa toda a possibilidade de vida para ela e sua comunidade.

O espírito nos escuta, e nós escutamos o espírito. Então eu disse a minha avó: “Eu prometo que nunca vou deixar de lutar. Tudo o que a senhora não conseguiu conquistar, eu prometo que vou tentar conseguir. Nunca vou desistir dessa luta, nunca vou desistir de lutar por nossos direitos".

Sheyla chora agora. E me explica que a vida não está apenas nas árvores e nas flores, no rio que corre livre e cristalino nem nas espécies de peixes, pássaros, animais e insetos, mas num modo de ver e de estar no mundo. Num modo de ser – no mundo. É isso que Sheyla nos dá ao nos espantar com seu olhar sobre a Europa.

Em setembro, contei a história dela e deste olhar para europeus, numa palestra no Festival de Literatura de Mântova, na Itália. Muitos rostos na plateia se iluminaram no início, antecipando o maravilhamento de Sheyla diante da cultura europeia, acostumados que estão a serem admirados. E foi ainda mais evidente a confusão estampada em suas faces quando contei da resposta de Sheyla. Nas horas e dias que se seguiram, aqueles que me encontravam nas ruas da cidade e nos eventos do festival comentavam sobre como foi ao mesmo tempo chocante e rico aquele olhar inusitado sobre a sua cultura. E foi aquele olhar que fez com que compreendessem o que estava em jogo naquele momento na Amazônia brasileira.

Em nossa conversa, os olhos de Sheyla escureceram ainda mais depois de seu relato de viagem. Percebi que se alagavam como acontecerá com a floresta se sua luta for em vão. Mas é de água salgada – e não da água doce do Xingu – que os olhos de Sheyla se inundam quando fala na avó e no futuro próximo. Sheyla dói. Ela é o tipo de mulher que chora também de raiva. Ela diz então:

Eu odeio a palavra “desenvolvimento”. O Estado sempre usou esta palavra para justificar a destruição. Não deveria ser assim, né? O desenvolvimento deveria dar condições para as pessoas viverem na sua própria forma de ser, na sua cultura. Mas, na prática, o desenvolvimento é usado para nos destruir. Porque o desenvolvimento não existe para sustentar a vida, mas para o lucro das empresas e de quem faz as políticas. Em nome do desenvolvimento meus antepassados perderam até a língua que falavam. E agora poderemos perder também a vida. De novo, em nome do desenvolvimento. O que é Belo Monte? A destruição da Amazônia e da vida dos povos que vivem lá em nome do desenvolvimento. Eu detesto, detesto essa palavra.

Sheyla Juruna tem o dom precioso do estranhamento. Ela não aceita fácil o que lhe dizem. Tampouco sai repetindo os discursos dos que defendem o mesmo que ela. Numa região em que parte das lideranças indígenas foi corrompida por cestas básicas, combustível e até isqueiros, como nos tempos em que se trocava ouro por espelhinhos, Sheyla se destaca com sua lucidez. Talvez por ter perdido o idioma, com tudo o que o idioma carrega, ela tenha um respeito profundo pelas palavras, ainda que sejam as palavras da língua de quem assassinou o seu povo.  

Alguém já disse que as estatísticas oficiais costumam torturar os números até que eles confessem. Sheyla mostra que, com o discurso do desenvolvimento, se passa o mesmo. Se “bem” torturado, pode servir – e tem servido – para quase tudo. É assim que Sheyla nos ajuda a estranhar não só a Europa, mas também o Brasil. Nos ajuda a ver o que não está também aqui. E, neste momento, mais do que em qualquer outro período histórico, esperávamos que estivesse.

Nesta segunda-feira, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em Brasília, deverá julgar a ação civil pública que pede a interrupção de Belo Monte com base na exigência constitucional de que os índios sejam ouvidos. Segundo o artigo 231 da Constituição Federal, as comunidades indígenas deverão ser consultadas previamente no caso de aproveitamento hidrelétrico que afetem as populações. No momento em que esta coluna é publicada, o julgamento ainda não ocorreu. Sheyla Juruna é uma das que reivindica que seu povo seja escutado.

Durante todo o processo de Belo Monte, nunca houve uma consulta específica aos indígenas. Ficamos esperando que acontecesse, mas não aconteceu. O governo federal apenas mente que nos escutou. E nós lutamos para mostrar que não fomos escutados e, sim, queremos e temos o direito de sermos ouvidos.

Eu lembro bem da ditadura militar. Era pequena, mas ela marcou a minha vida de várias maneiras. Quando cresci, li tudo o que pude sobre esse período histórico, porque queria adquirir maior conhecimento. E, quando me tornei jornalista, escutei muitas vítimas do regime. Quando criança, porém, ao folhear as revistas dos anos 70, não conseguia evitar um certo fascínio ao deparar-me com a propaganda do governo militar sobre a Amazônia, naquele tempo tão distante de mim quanto a Lua. “Uma terra sem homens para homens sem terra”, “Integrar para não entregar”, “Deserto verde”... eram alguns dos slogans e expressões que povoavam a ocupação da floresta pela ditadura. Só quando cresci eu soube que sempre tinham existido muitos homens, mulheres e crianças na Amazônia – e que parte deles havia sido vítima de genocídio na ocupação promovida pelo Estado brasileiro. E que não havia deserto, só verde. O deserto veio depois, patrocinado pelo governo e financiado por dinheiro público.

Depois de tudo, agora me espanto com a sensação de estar revivendo algo fora de época. O PAC para a Amazônia do governo Lula e agora do governo Dilma é um grande projeto de ocupação baseado em obras faraônicas, financiadas por dinheiro público, com a mesma lógica predatória e imediatista do passado. E, principalmente, com o mesmo discurso do desenvolvimento. Não o desenvolvimento sustentável, que mobiliza o planeta, mas aquele surrado desenvolvimento dos velhos tempos. Só não se fala – muito – em “progresso”, porque esta palavra realmente até os mais obtusos teriam dificuldade de engolir na segunda década do século XXI.

Tenho virado as páginas de jornais e revistas da democracia e lido coisas que me remetem a uma época em que a imprensa vivia sob censura. Pego na porta de casa o exemplar dominical de um dos maiores jornais do país. E lá está a manchete: “Amazônia vira motor de desenvolvimento”. Tive uma sensação estranhíssima. Me lembrava de muitos títulos parecidos, mas nos anos 70. A certa altura da reportagem, leio lá: “Para acelerar a implantação dos projetos, o governo federal estuda uma série de mudanças legais. Entre elas estão a concessão expressa de licenças ambientais, a criação de leis que permitam a exploração mineral em áreas indígenas e a alteração do regime de administração de áreas de preservação ambiental”.

Ou seja: o governo federal pretende anular as conquistas democráticas das duas últimas décadas na área socioambiental. Em nome do mesmo tipo de desenvolvimento pregado na ditadura, com consequências amplamente documentadas: devastação, genocídios, conflitos e assassinatos que seguimos testemunhando. Como se 40 anos não tivessem se passado desde a década de 70 – e como se nesse período o povo brasileiro não tivesse reconquistado a democracia e as melhores cabeças do planeta não tivessem compreendido que a grande riqueza natural e estratégica para o futuro é a água e a biodiversidade.

Sim, o “desenvolvimento” está de volta. Não que algum dia tenha abandonado as mentes ávidas de alguns, arcaicas de outros, mas o surpreendente agora é que nem mesmo existe a preocupação de disfarçar o dinossauro com um modelito mais fashion. Repetem por aí que se as obras não saírem vai faltar luz na casa dos pobres e este é todo o respeito (não) demonstrado pela inteligência do povo que os elegeu. E, o mais inusitado: as velhas ideias sobre a ocupação da Amazônia saem do papel para a floresta concreta justamente nos governos do primeiro presidente operário e da primeira mulher presidente – em cuja biografia está o combate à ditadura militar a um custo pessoal bem alto.
Não é espantoso? O Brasil segue sendo um país assinalado pelo absurdo. E, como diria Sheyla Juruna, estranhar é preciso.

Fonte: Fábio Oliveira – fabioxoliveira2007@gmail.com
                                               fabioxoliveira.blog.uol.com.br/








domingo, 12 de fevereiro de 2012

QUANTIDADE É DOENÇA MORTAL

O cientista Frank Fenner, professor emérito de microbiologia na Universidade Nacional da Austrália, um dos líderes da equipe que ajudou a erradicar a varíola, disse em entrevista recente que ele acredita que a raça humana provavelmente será extinta nos próximos 100 anos.

 Ele cita a explosão populacional e o consumo "desenfreado", como tendências irreversíveis que conduzam a essa devastação, fazendo com que os seres humanos e a maioria dos outros animais da terra não sobrevivam. Além disso, ele inclui a enorme quantidade de poluição que continuam a ser despejar nos oceanos do mundo, tais como fertilizantes, pesticidas, fosfatos e até mesmo óleo de navios danificados ou vazamentos, tais como as do Golfo do México, o esgotamento lento das fontes de água, como os lençóis d'água e rio e a destruição da flora que realizam a limpeza do ar, tais como as florestas tropicais.

 Fenner, como muitos outros cientistas que estudam o planeta acreditam que há um ponto de inflexão, que ocorre em todas as populações, independentemente de ratos em uma gaiola, dinossauros em áreas úmidas ou os seres humanos que expandiram seu alcance abrangendo toda a terra disponível. Quando esse ponto de inflexão vem, não há como voltar atrás, porque a comida e a água que é necessário para sustentar uma criatura estarão empobrecidos ou impróprios para consumo devido a tudo que foi feito.

 Muitos estudos têm sido realizados mostrando que chegamos a um ponto sem retorno, quando muitos animais de qualquer espécie habitam um espaço finito. Isso é por causa do instinto de sobrevivência inato. Os seres humanos, como todos os outros animais vão lutar até o seu último suspiro para sobreviver, e é por isso que vamos todos acabar morrendo, porque na luta desesperada para sobreviver, nós vamos destruir os próprios meios para fazê-lo.Na verdade, há exemplos na história da humanidade que demonstram esse modelo muito claramente. Sempre que os seres humanos que habitaram um espaço onde eventualmente ficaram sem espaço para crescer, eles desapareceram.

 Considere o exemplo dos habitantes da Ilha de Páscoa. Eles viveram e floresceram até que acabassem os recursos. E ao invés de um segmento de grande parte deles morrerem de fome, todos eles morreram, porque na tentativa de salvar a todos, tornou impossível qualquer pessoa sobreviver. O solo ficou tão reduzido que nada crescia. Os peixes desapareceram e não havia ninguém para repovoar as águas. Em suma, não havia mais nada para comer, e assim, todos eles morreram, deixando para trás suas estátuas gigantes e nada mais.

 A população mundial está perto dos sete bilhões cada vez mais rápido. Com o final deste século haverá certamente guerras de tamanho e alcance sem precedentes, epidemias e fome em massa. Mas porque não somos capazes ou não queremos controlar a nossa própria população, simplesmente deixaremos de existir porque continuamos a destruir os recursos necessários para a nossa sobrevivência.

 Fonte: Fábio Oliveira – fabioxoliveira2007@gmail.com
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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

TUDO COMEÇOU NA GRÉCIA E ACABARÁ NA GRÉCIA

Autor: Leonardo Boff, Filósofo e Teólogo

Nossa civilização ocidental hoje mundializada tem sua origem histórica na Grécia do século VI antes de nossa era. Ruíra o mundo do mito e da religião que era o eixo organizador da sociedade. Para pôr ordem àquele momento crítico fez-se, num lapso de pouco mais de 50 anos, uma das maiores criações intelectuais da humanidade. Surgiu a era da razão critica que se expressou pela filosofia, pela política, pela democracia, pelo teatro, pela poesia e pela estética. Figuras exponenciais foram Sócrates, Platão, Aristóteles e os sofistas que gestaram a arquitetônica do saber, subjacente ao nosso paradigma civilizacional: foi Péricles como governante à frente da democracia; foi Fídias da estética elegante; foram os grandes autores das tragédias como Sófocles, Eurípides e Ésquilo; foram os jogos olímpicos e outras manifestações culturais que não cabe aqui referir.
 Esse paradigma se caracteriza pelo predomínio da razão que deixou para trás a percepção do Todo, o sentido da unidade da realidade que caracterizava os pensadores chamados pré-socráticos, os portadores do pensamento originário. Agora se introduzem os famosos dualismos: mundo-Deus, homem-natureza, razão-sensibilidade, teoria-prática. A razão criou a metafísica que na compreensão de Heidegger faz de tudo objeto e se instaura como instância de poder sobre este objeto. O ser humano deixa de se sentir parte da natureza para se confrontar com ela e submetê-la ao projeto de sua vontade.
Este paradigma ganhou sua expressão acabada mil anos depois, no século XVI, com os fundadores do paradigma moderno, Descartes, Newton, Bacon e outros. Com eles se consagrou a cosmovisão mecanicista e dualista: a natureza de um lado e o ser humano de outro de frente e encima dela como seu “mestre e dono” (Descartes) e coroa da criação em função do qual tudo existe. Elaborou-se o ideal do progresso ilimitado que supõe a dominação da natureza, no pressuposto de que esse progresso poderia caminhar infinitamente na direção do futuro. Nos últimos decênios a cobiça de acumular transformou tudo em mercadoria a ser negociada e consumida. Esquecemos que os bens e serviços da natureza são para todos e não podem ser apropriados apenas por alguns.
 Depois de quatro séculos de vigência desta metafísica, quer dizer, deste modo de ser e de ver, verificamos que a natureza teve que pagar um preço alto para custear esse modelo de crescimento/desenvolvimento. Agora tocamos nos limites de suas possibilidades. A civilização técnico-científica chegou a um ponto em que ela pode por fim a si mesma, degradar profundamente a natureza, eliminar grande parte do sistema-vida e, eventualmente, erradicar a espécie humana. Seria a realização de um armgedon ecológico-social.
 Tudo começou há milênios na Grécia. E agora parece terminar na Grécia, uma das primeiras vítimas do horror econômico, cujos banqueiros, para salvar seus ganhos, lançaram toda uma sociedade no desespero. Chegou à Irlanda, a Portugal, à Itália, podendo-se se estender à Espanha e à França e, quiçá, a todo o sistema mundial.
 Estamos assistindo a agonia de um paradigma milenar que está, parece, encerrando sua trajetória histórica. Pode demorar ainda dezenas de anos, como um moribundo que resiste, mas o fim é previsível. Com seus recursos internos não tem condições de se reproduzir.
 Temos que encontrar outro tipo de relação para com a natureza, outra forma de produzir e de consumir, desenvolvendo um sentido geral de interdependência     face  à comunidade de vida e de responsabilidade     coletiva   pelo nosso futuro comum. A não encetarmos esta conversão, ditaremos para nós mesmos o veredicto de desaparecimento. Ou nos transformamos ou desapareceremos.
 Faço minhas as palavras de Celso Furtado, economista-pensador: ”Os homens de minha geração demonstraram que está ao alcance do engenho humano conduzir a humanidade ao suicídio. Espero que a nova geração comprove que também está ao alcance do homem abrir caminho de acesso a um mundo em que prevaleçam a compaixão, a felicidade, a beleza e a solidariedade”. Mas à condição de mudarmos de paradigma.
 Fonte: Fábio Oliveira – fabioxoliveira2007@gmail.com
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